Por Tiago Cisneiros
O jornalista César Tralli, da Rede Globo, apresentou, na Católica, na manhã desta sexta-feira (23), a palestra “Segurança: uma questão de cidadania”. O evento, que integra a programação da 7a Semana de Integração, atraiu centenas de estudantes e professores de diversos cursos da Universidade ao auditório G2. Também participaram a professora da graduação em Jornalismo Ana Veloso e o coordenador geral de Extensão, professor Alcivam Oliveira.
Na abertura do encontro, o professor Alcivam Oliveira qualificou a Semana de Integração Universidade Católica e Sociedade como uma tentativa de mobilizar o processo de ensino e aprendizagem através de recursos variados, como debates, minicursos e seminários. Sobre a palestra de César Tralli, afirmou: “Este evento trabalha o tema central da 7a Siucs, que é a relação entre a segurança e a cidadania. As melhorias dependem do Estado, mas, também, da sociedade, e um setor que pode colaborar bastante nesse campo é o de comunicação”.
Hoje, um jornalista reconhecido, correspondente internacional entre 1995 e 2000, responsável por célebres coberturas no Brasil e no mundo, como as prisões de Nicolau dos Santos Neto, Paulo Maluf e Juan Carlos Abadia, os atentados do 11 de setembro e a morte da princesa Diana. Na infância, filho de uma ex-bóia-fria, vivendo com dificuldades no interior de São Paulo. Segundo Tralli, muita coisa mudou, mas a visão de mundo e o objetivo continuam os mesmos. “Essa época mais complicada fez com que eu aprendesse a manter os pés no chão, enxergar que o repórter de televisão não é um artista. Sempre, tive a vontade de dar certo e, por isso, valorizo muito o que tenho. Para mim, é um prazer falar para jovens – principalmente, aos que querem seguir pelo jornalismo para mudar a sociedade, porque acredito na melhoria”, afirmou.
Para o repórter, além de melhorar, é preciso mostrar ao mundo uma nova imagem do Brasil. Tralli comentou sobre a ótica internacional de que o país é o palco da impunidade, usando, como exemplo, o caso do belga que atropelou cinco pessoas (matando uma) no Recife, nesta quinta-feira (22). “Eu morei fora por cinco anos e tenho certeza que ele não dirigiria sem a habilitação na Bélgica. Os estrangeiros não nos levam a sério, e precisamos lutar para reverter esse quadro.”
Ao voltar para o Brasil, em 2000, César Tralli optou pelos assuntos vinculados à “hierarquia da criminalidade”, isto é, as relações de corrupção e manipulação no governo e nas classes mais altas da sociedade. Segundo ele, o jornalista deve buscar a punição para os principais responsáveis pela violência. “Não podemos ter a ideia de que os crimes de colarinho branco são brandos. Nesse sentido, eu busco provocar uma mudança e combater a impunidade dos engravatados”, disse.
Entre os alvos mais conhecidos das suas reportagens, está o deputado federal Paulo Maluf, de quem Tralli ouve falar (mal) desde a infância. “Meu pai, sempre, reclamava dele. Acho que cresci com isso, meio predestinado a entrar nessa disputa”, brincou. Após cerca de sete anos apurando as supostas ilicitudes do político, o jornalista surpreendeu-se ao saber da sua prisão. “Os 55 dias de detenção parecem pouco para um país desenvolvido, mas já é um avanço para mudar nossa cultura de impunidade. Confesso que comemorei essa notícia”, contou.
Polícia para quem precisa…
De acordo com Tralli, a criminalidade em São Paulo, onde vive e trabalha, deve-se, em grande parte, à falência das polícias. “Ser policial, hoje, é o segundo emprego das pessoas. Esse quadro se agrava por causa da promiscuidade com o trabalho empresarial. Diretores de órgãos de segurança estão administrando empresas de blindagem de carros e delegados criando empresas privadas de vigilância.” O jornalista alega que a situação da segurança pública se tornou uma responsabilidade coletiva, já que o sistema é direcionado conforme os interesses dos poderosos, através do tráfico de influência. “Muitos delegados são indicados pelas elites, enquanto os bons policiais não são valorizados e, por isso, passam a ser cada vez mais raros”, explicou.
As falhas no sistema de segurança, segundo Tralli, têm um vínculo estreito com o crescimento da corrupção no meio policial. “Essa promiscuidade é assustadora. Eu não consigo citar um caso, nos últimos cinco ou seis anos de reportagem, em que não tenha existido o envolvimento – direto ou indireto – de um policial”, declarou. Ele revelou, ainda, que 90% dos produtos contrabandeados que chegam a São Paulo têm escolta de policiais militares à paisana.
Na cobertura da prisão de Juan Carlos Abadia, César Tralli ouviu do megatraficante colombiano a dica para pôr um fim no comércio de drogas em São Paulo. “Ele me disse que o segredo seria acabar com o Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc). Nas poucas vezes em que o abordou, a polícia só pretendia pedir dinheiro”, contou. O jornalista define o esquema entre polícia e bandidos como uma sociedade anônima (S.A.) do crime, devido aos constantes acordos e relações de corrupção.
Reportagens
Surpresas, riscos, ansiedade e medo. As sensações vividas por um jornalista investigativo foram trazidas à tona por César Tralli, no relato de algumas experiências, compreendidas nos mais diversos campos: da política ao mercado de combustíveis, dos erros aos acertos da polícia. Para acompanhar cada história, nada melhor do que as próprias reportagens, exibidas no telão do auditório G2.
Em junho de 2008, Tralli percebeu que muitas pessoas estavam enfrentando problemas com os automóveis em São Paulo, sempre depois de abastecer. Dessa constatação, chegou à máfia do combustível adulterado – segundo o jornalista, “uma prova de como a insegurança afeta até a economia”. Na época, ele se surpreendeu com o grau de penetração do golpe no mercado: “Não tinha ideia de como isso tinha se enraizado. Todo esse processo aconteceu graças à negligência e à corrupção policial, além das falhas no trabalho dos órgãos fiscalizadores”. Os preços mais baixos oferecidos pelos criminosos, junto a constantes ameaças aos comerciantes legais, estavam destruindo a concorrência na cidade, espalhando medo e criando um oligopólio nos postos de combustível.
Para contar a história, o jornalista e sua equipe adaptaram o tanque de uma Kombi, de maneira que o combustível recebido fosse desviado para um depósito. O líquido coletado era repassado para exames laboratoriais, que apontaram uma enorme ocorrência de adulteração: mais de 90% dos cerca de 300 estabelecimentos pesquisados vendiam gasolina com excesso de álcool na sua composição. Para burlar a fiscalização da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), foi montado um esquema de substituição rápida do conteúdo nas bombas de combustível.
Segundo Tralli, a máfia sofreu um duro golpe devido à investigação jornalística. “Nossas denúncias provocaram algumas mudanças, mas, em algum tempo, a adulteração voltou. Então, continuamos insistindo e, finalmente, esse problema parece estar mais controlado”, comemorou. Por causa da série de reportagens (cerca de 60 no jornalismo local e 20 em rede nacional), foram fechados, definitivamente, 256 postos de combustível, cassadas as licenças de antigos proprietários e alteradas a legislação para o mercado.
Por causa das investigações acerca da adulteração de combustível, Tralli descobriu um engenhoso golpe dos postos no comércio de gás veicular. “Às vezes, me impressiono com a criatividade dos bandidos. Nesse caso, as pessoas furtavam o gás, vendendo muito mais do que era registrado para a fiscalização.”
Teimosia não parece ser um mau atributo para um jornalista investigativo. Na palestra, César Tralli admitiu que procura levar o assunto das reportagens até o seu esgotamento. “Nessa profissão, você vai conhecendo o mercado e as pessoas, e começa a receber as informações. Gosto de fazer, do limão, uma limonada, indo até não poder mais com o tema. Já cheguei a manter a mesma pauta por um ano”, contou.
A insistência, no entanto, não se restringe à busca de imagens ou documentos que comprovem as ilegalidades. O repórter destacou que, também, é preciso muito tato para convencer pessoas amedrontadas a depor a respeito dos golpes e escândalos. “No caso dos combustíveis, precisei negociar durante semanas com donos de postos que tentavam manter o seu negócio licitamente. Eles tinham medo de denunciar porque sofriam ameaças graves, já que a máfia estava ligada a gangues de assalto a banco e carro-forte.” Os empresários só aceitaram conceder entrevista com a garantia de sigilo de identidade.
Para não perder as oportunidades, César Tralli não se separa do “kit reportagem”, isto é, a lanterna, a câmera de vídeo, as pilhas e mais alguns instrumentos que traz na bolsa. O conjunto foi muito útil em uma das mais importantes coberturas do jornalista: a da libertação do empresário Rida Mohamed. O acaso fez com que o repórter abrisse mão da infraestrutura, em nome da notícia.
A história se passou em São Paulo. César Tralli estava, apenas, checando informações nas proximidades da sede da Divisão de Anti-Sequestro da Polícia Civil, pela qual o jornalista nutre bastante respeito, conforme deixou claro na palestra. De repente, Tralli viu um policial sair correndo do local e, também rapidamente, decidiu acompanhá-lo. Na falta de um cinegrafista, ativou a própria câmera e registrou a prisão de um dos seqüestradores do empresário catarinense Rida Mohamed, que usava um telefone público da vizinhança.
O flagra levou o jornalista a uma viagem de três horas, acompanhando os policiais, de São Paulo ao município de Jacutinga, no interior de Minas Gerais. Em uma fazenda do município, encontraram o cativeiro, prenderam os demais seqüestradores e libertaram o empresário Rida Mohamed. As cenas, gravadas no escuro, deram origem à principal reportagem do Jornal Nacional do dia, com cerca de cinco minutos de duração. Ao rever as imagens, Tralli admitiu a emoção: “Essa história é fantástica, me arrepio sempre que a vejo. Oito horas da noite, no meio do mato e aquela ansiedade. Eu não sabia se conseguiria chegar lá e sobreviver. Mas eu não ia me perdoar se não estivesse com a minha câmera”.
Às vezes, porém, o jornalismo não anda de mãos dadas com o Estado. As reportagens de César Tralli sobre o sequestro de Eloá e Nayara, em Santo André, contrariaram a versão da polícia para justificar a invasão ao apartamento usado como cativeiro. Por causa dos erros na ação, o seqüestrador, Lindemberg Alves, teve tempo de assassinar uma das garotas e ferir a outra. “Os policiais disseram que explodiram a porta depois de ouvirem um disparo vindo do local. Como desconfiamos dessa informação, analisamos as fitas de todas as nossas câmeras e não identificamos qualquer barulho. Os vídeos foram exibidos para o perito Ricardo Molina, que, também, não encontrou qualquer som de tiro anterior à bomba”, relatou.
De acordo com Tralli, a reportagem surgiu do sentimento de inquietude, necessário a todo jornalista investigativo. “Devemos desconfiar de tudo e de todos sempre, pensar se aquela situação ou informação está correta”, afirmou. Mesmo depois de ter o erro revelado, a polícia não admitiu a execução inadequada da invasão, provocando a irritação do repórter. “O que lamento nesse incidente, além da morte de Eloá, é o fato de as autoridades não assumirem suas falhas no Brasil. Fico espantado com essa falta de sensibilidade para corrigir os rumos.”
César Tralli, também, enfatizou a possibilidade de mudança nas pautas originais. Para ele, os repórteres devem analisar os assuntos e provas com carinho, a fim de descobrir novas informações ou vacilos. Foi o que aconteceu na sua leitura de arquivos telefônicos do advogado Marcos Vilarinho, envolvido na recente Operação Castelo de Areia. Entre os registros, o jornalista encontrou uma conversa em que Jânio Quadros Neto fala sobre a suposta fortuna do avô deixada em uma conta secreta na Suíça. Embora não se saiba a unidade monetária em questão, o valor é estimado em 20 milhões. “Agora, o dinheiro está sendo procurado e, se encontrado, deve ir para o Ministério Público Federal. Acho que consegui mais um inimigo na minha carreira”, brincou.
Profissão: repórter
Mais um inimigo na carreira… Para quem desvenda ilegalidades e denuncia crimes e golpes, é esperado que não seja um dos primeiros. Apesar das discordâncias pessoais, Tralli diz que procura manter o respeito em todos os contatos. “Trato todos da mesma maneira, sempre chamando por ‘senhor’. Por maior que seja minha indignação, é uma coisa profissional, desvinculada a qualquer questão pessoal.”
O equilíbrio, aliás, é uma das principais preocupações do jornalista. Pela cobertura do caso Eloá, o Jornal Nacional concorreu ao Emmy International, premiação às melhores produções televisivas do mundo. A Rede Globo conseguiu chegar à disputa final, contra a britânica BBC e a árabe Al-Jazeera. Para Tralli, responsável pelas reportagens, o resultado positivo não pode arrefecer o ânimo do profissional. “É algo muito bom, mas fugaz. No dia seguinte, já estou de volta às ruas, no meu trabalho cotidiano”, esclareceu.
Depois de responder a perguntas e comentários dos espectadores (a maioria sobre os bastidores do jornalismo investigativo), César Tralli concluiu a palestra com uma consideração sobre a postura do repórter e a sua relevância na sociedade. “É preciso ter bom senso para escolher o que vai ao ar. Já fui ‘furado’ (não divulgar em primeira mão, no jargão midiático) e tive discussões sérias com superiores e por causa da minha lealdade com as fontes. Cada jornalista deve ter consciência do que vai publicar, cumprindo o papel de desvendar o crime, mas sem comprometer a relação com o informante”, afirmou.
A profissão de jornalista, segundo Tralli, compensa os momentos de correria e estresse quando se constata a sua utilidade. “É maravilhoso quando vemos a reportagem no ar, provocando reações positivas na sociedade e gerando mudanças para o bem comum. Não tenho a ilusão de mudar mundo, mas acredito que estou fazendo minha parte pela cidadania. Quanto mais puder denunciar, mais o farei, se isso for melhorar a realidade.”